O culto de Héracles - Moeda e religião

Esta pesquisa pretende mostrar como as moedas podem dizer alguma coisa sobre o culto de Héracles na Sicília.

A utilização de um  método iconográfico por parte da arqueologia, tem oferecido boas contribuições para um maior aprofundamento da religião grega. De acordo com R. Laffineur os dados arqueológicos ligados a religião são: os santuários públicos, o equipamento mobiliário, o culto doméstico, os instrumentos do culto, as manifestações/atos do culto, os sacrifícios e/ou libações, e as oferendas votivas ( a propósito da maioria das manifestações materiais das crenças ). Ainda Laffineur acredita que a Iconografia muitas vezes possibilita acesso direto a aspectos da  vida religiosa, cujos vestígios materiais não podem dizer. Dentre eles ele destaca: os gestos que acompanham a cerimônia, o desenrolar das cerimônias elas mesmas; o pessoal do culto, e dentro de certo limite o panteão. A forma figurada de certos objetos exumados pode dizer coisas sobre certas crenças que os testemunhos escritos não poderiam. Os vestígios arqueológicos não dão somente acesso as crenças que se manifestam dentro das práticas do culto. Eles permitem igualmente aproveitar, de uma maneira mais geral, o lugar que ocupa o culto dentro da sociedade. Essa hierarquia em três níveis  - material, ideológico e sociológico  - tem sido bem colocado em evidência por Collin Renfrew e as escavações do santuário de Philacopi, que partindo da recorrência dos achados e da confrontação de dados múltiplos tem conseguido resultados muito interessantes.
            Para relacionar o método iconográfico às moedas e todo o seu universo nos apegamos aos ensaios de Rossella Pera: Tipi Dionisiaci in Sicilia e Magna Grecia. Em: JNG, I, 1949: 33-70; e  Maria Beatriz Borba Florenzano: Notes on the Imagery of Dionysus on greek coins, 1999: 1-10. Neste último artigo, a professora Florenzano questiona o relativismo da interpretação numismática, ocasionado por uma metodologia muito intuitiva e nada sistemática. Por isso muitos estudiosos estariam se refugiando em métodos estatísticos e metodológicos, os quais por sua precisão, tornam-se muito mais confiáveis. Os trabalhos de L. Lacroix, procuram adaptar o método arqueológico tradicional para a numismática: suas pesquisas são baseadas principalmente na análise de cada tipo monetário individualmente; cada um é estudado em seu relacionamento para com a evidência arqueológica de uma específica produção, na luz da tradição lendária ou religiosa, recoberta através das antigas fontes escritas ou epigráficas.
            Héracles é geralmente reconhecido sobre as moedas pelo qual é convencionalmente aceito como seus atributos, embora eles não tivessem sido introduzidos todos ao mesmo tempo e diversos deles não são exclusivamente relacionados com este herói-deus: como o arco, a flexa e a aljava. Como muitas vezes esses elementos foram usados pelos estudiosos como referências diretas a Héracles e/ou para sua religião ou culto, para o propósito de nossa pesquisa nós decidimos considerá-los por eles mesmos, e não necessariamente em associação comum a divindade masculina. M. B. Florenzano em estudo a Dioniso faz a seguinte observação: Este panorama geral de desenvolvimento dos tipos retratando Dioniso no mundo grego apresenta alguns problemas muito precisos: o primeiro deles concerne aos elementos relacionados a Dioniso. Quão distante podemos aceitar que a mera presença de um cântaro  - tomar o proeminente atributo de Dioniso  - indica a presença da divindade ou de seu atributo? O cântaro como uma forma cerâmica tem, por certo, uma longa história: origem beócia, origem etrusca, adaptações áticas. No século VII a. c. ele aparece sobre vaso pintado, por exemplo, como um simples indicador de embriaguez. Esse exemplo nos faz transpor o problema para os tipos monetários que apresentam Héracles ou seus atributos e indagar de que forma o estudo da imagem de Héracles nas moedas poderia contribuir para um melhor entendimento da religião grega na Sicília conforme propõe nossa pesquisa? Para responder a essa pergunta temos que considerar: 1º) a cunhagem na Grécia Antiga não foi um fenômeno especificamente “econômico” e que a economia não era uma esfera autônoma com sua leis próprias, assim, a cunhagem era, na verdade, um fenômeno sócio-cultural, incluindo aspectos econômicos, poliíticos, jurídicos e religiosos. 2º) partindo do trabalho de C. Berard e J. L. Durand, que trabalham com uma teoria de “repertório de unidades formais mínimas” para a cerâmica, mas que  podem ser aplicadas para as moedas. Este repertório é comum para os artesãos e conhecido pelo público. Na visão destes autores, o que dá sentido para a imagem é a combinação de diversas unidades e não cada traço individualmente. Se a analogia entre substantivo/adjetivo e tipo principal/tipo secundário como lançou C. Caltabiano pode ajudar-nos a entender muitos tipos monetários específicos, nós acreditamos que a metodologia de Berard pode  nos ajudar  a elucidar o significado dos tipos monetários gregos em geral.
As moedas da Sicília grega são as mais esplendidas produções na história da arte monetária. Começando com as cristalinas imagens encontradas sobre as cunhagens das cidades sob o domínio dos Deinomênidas, ( importante família aristocrática da Sicília ), elas amadureceram, depois do final da era dos tiranos, nas suntuosas emissões do final do quinto século. As principais cidades que introduziram a cunhagem para a Sicília ( Naxos, Himera e Selinunte ) estavam todas em locais de transição. Para Naxos e Himera este fato não precisa ênfase. Himera e Selinunte estavam ambas sobre a fronteira do mundo grego, mas abriram para comercializar com os etruscos, os púnicos e ilhas distantes à oeste. De acordo com Kraay, há indicações que apontam para o terceiro quarto  do sexto século o início das cunhagens produzidas na Sicília. Ele continua dizendo que as primeiras cidades a cunhar moedas na Sicília foram as colônias calcídias de Naxos,  que teria começado suas cunhagens por volta de 530 a. C., a próxima teria sido Zancle ( Messana ), que teria iniciado sua produção por volta de 525 a. C., depois Himera, que pode ter sua cunhagem iniciada até 530 a. C. Ainda haveria uma última das primeiras cidades produtoras que seria  Selinunte, cuja moeda padrão teria sido o didracma, o qual teria seguido o mesmo padrão dos didracmas de Corinto, de onde o padrão tenha sido provavelmente derivado.
Sabemos que as mais impressionantes moedas gregas surgiram na Sicília e especialmente no período de dominação dos tiranos. Por este motivo, cabe a nós fazer uma breve explanação das principais características dos tiranos. Primeiro, apesar de usurparem o poder pela força, estabeleciam dinastias familiares para que se mantivesse assim a sua tirania ( paradoxalmente como se fossem reis ), segundo, os tiranos eram anteriormente membros da elite social da cidade, e terceiro, precisavam de apoio das massas, transformando-se, desta forma, em governantes altamente populistas. É importante salientar que o sentido que a modernidade adquiriu para referir-se ao termo tirano, como um indivíduo cruel e perverso, é muito diferente do sentido que se tinha na Grécia Antiga, onde possuía as características acima mencionadas, e sua conduta podia variar de tirano para tirano ou de situação para situação.
Sendo assim, muitas das vezes, as cunhagens estavam associadas às questões político-econômicas, na qual reis e tiranos aproveitavam-se das grandes gestas,  da  virtude  e da deidade de determinados heróis para ratificar, através de suas  representações nas moedas,  seus próprios feitos,  sua ascensão política ou suas vitórias na guerra. É o caso da emissão das moedas com representações de Héracles na cidade de Siracusa no quarto século.
O desenvolvimento da fabricação das moedas na Sicília alternou muito de cidade para cidade. Umas começaram a cunhar imediatamente enquanto que outras não. Em outras palavras, até mesmo importantes lugares como Acragas, Gela, Siracusa e Catânia não possuíam prata suficiente para a cunhagem. Foi o influxo de pratas extraídas que fez a cunhagem possível na Sicília, e fluxo desta prata dentro da Sicília foi muito mais forte sobre a costa setentrional, do que no sul e no leste. Aparentemente a chegada dos atenienses pelo fim do sexto século (com as moedas de modelo ateniense)  e as moedas de prata do norte grego, fizeram prover metal para o segundo grupo de produção siciliana.

            As primeiras moedas da Sicília que tiveram Héracles representado remontam ao quinto século. As cidades cunhadoras neste primeiro período foram Agrigento, Camarina, Cephaloedium, Entella, Gela, Himera,  Longane,  Selinunte, Siracusa  e  Solunto. Todas essas cidades  apresentam como característica geral a presença da cabeça de Héracles tanto com barba quanto imberbe, mas sempre com a pele de leão ( este o principal atributo desta divindade, e que possibilita, a princípio o seu reconhecimento ). Neste primeiro momento não se priorizou um lado da moeda para se representar o herói, aparecendo em algumas cidades sobre o anverso e em outras sobre o reverso. A única representação de Héracles diferenciada para o século V a. C. foi produzida em Selinunte, na qual temos Héracles nu lutando contra o touro de Creta, moeda esta que analisaremos mais a frente quando tratarmos da origem de Selinunte.
            A cidade de Himera é a que apresenta o maior número de tipos monetários de Héracles para esse período. Apresenta  cabeça de Héracles imberbe, com pele de leão, apresenta Héracles sentado, Héracles em pé com pele de leão segurando clava, e Héracles com pele de leão, imberbe,  nu, com pele sentado sobre rocha, segurando clava. 
Foi Himera que introduziu no século V a. C. em suas moedas, Héracles em pé, com pele de leão segurando clava, as vezes arco, este tipo seria representado novamente pela cidade de Alaesa no  século IV, e em Iaetia no século III a. C..  É compreensível entender esta íntima relação entre Héracles e as moedas produzidas em Himera, haja vista se notarmos o passado mítico da cidade que envolve diretamente a figura do herói. De acordo com Diodoro enquanto Héracles  passava através da costa da Ilha, os mitos relatam, as Ninfas deram-lhe banhos quentes esguichando sobre seu corpo as águas, assim ele pôde se refrescar aliviando a fadiga de sua jornada. Existem duas delas, chamadas respectivamente Himera e Segesta, cada qual tendo seu nome colocado no lugar onde os banhos ocorreram ( Diodoro, Livro IV, 23. 1 ).
            Não é por acaso que Héracles foi muito lembrado nas moedas das cidades em que o mito situa sua passagem. Aqui entra em questão Héracles em relação aos cultos e mitos de fundação, acima, muitas vezes, da questão político-propagandística que, por tantas vezes, nosso herói foi empregado. As moedas de Himera com representação de Héracles atravessa os séculos V, IV e III confirmando a importância que esse herói tinha para essa cidade.
            Camarina, ainda no século V introduziu um tipo singular de representação de Héracles: trata-se de uma moeda que apresenta no anverso uma quadriga conduzida por Atenas, e no reverso destaca-se a cabeça de Héracles com barba e com pele de leão, as vezes ele aparece imberbe e as vezes com costeletas, realmente um tipo peculiar. Apesar de suas variantes, este é o único tipo monetário com imagem de Héracles produzido na cidade de Camarina.
            A clava, a aljava, o arco e a flecha, e a pele de leão começam a aparecer nas moedas siciliotas isoladamente, ou as vezes agrupados, a partir do século III a. C. na cidade de Agipa ( Agyrium ) – aparece no reverso -, em Centuripae, também aparece no reverso, mas apresenta no anverso a cabeça de Héracles com barba e coroado ( sendo esse também um tipo monetário diferenciado que foi representado pela primeira vez nesta mesma cidade, no século III a. C. ). O fato da cidade de Centuripae apresentar a imagem de Héracles coroado sobre o anverso de uma moeda e sobre o reverso desta mesma moeda um de seus atributos, no caso a clava, torna evidente o anseio desta cidade em utilizar a força contida na imagem deste herói, quando de sua cunhagem, mesmo que só faça este tipo monetário com representação de Héracles nesta cidade. Esse fator nos faz indagar que interesses poderia haver nesta cidade, se ela não se interessou em cunhar outras moedas com a imagem de Héracles e quando o faz, coloca-o em seu anverso e reverso?
            Cephaloedium destaca-se por sua alta incidência nos tipos moenetários de Héracles ou seus atributos. Contudo, o que mais chama a atenção para esta cidade é colocar no reverso de uma moeda Héracles segurando em uma das mãos a clava e na outra mão uma maça. Esta pode ser uma alusão ao trabalho As maçãs de ouro das Espérides, ou mesmo uma alusão a fertilidade do solo e uma possível vinculação com Deméter, mas infelizmente não há evidências nas fontes bibliográficas, epigráficas ou arqueológicas que confirmem qualquer uma dessas versões. O que sabemos é que graças as emissões monetárias de Cephaloedium nos faz perceber o Héracles  como sendo o mais importante do lugar. Nas vitrines 7-12 da sala arqueológica são ocupadas de terracota fugurada, do período arcaico ao romano: destaca-se, entre outros, uma bela cabeça de Héracles helenística, depois, máscara, busto, e relevos votivos.
Diversas são as cidades que apresentam cunhagens de moedas com a representação de Héracles, o que nos mostra sua importância nas cidades siciliotas, como veremos mais adiante. Todavia, em muitas das cidades em que os relatos de Diodoro e outras fontes registram uma presença muito forte de Héracles, não se apresentam santuários, moedas, e tampouco templos, erigidos em sua homenagem.  É  o  caso,  por exemplo,  da  cidade  de Érice, situada no extremo  ocidente da Sicília. Esta cidade tem no mito de Héracles explicação fundamental para a presença dos gregos no local, contudo, não há santuários dedicados ao herói nesta cidade. Mas há um tipo monetário de Héracles que no anverso apresenta Afrodite e no reverso Héracles em pé, segurando em sua mão a clava e sobre o braço a ple de leão.

                        É difícil dissociar os feitos da figura divina ou mesmo da virtude de Héracles. Por exemplo, querer dizer que uma representação de Héracles em alguma moeda refere-se exclusivamente a sua virtude, a sua deidade ou aos seus feitos, é algo extremamente perigoso, pois o imaginário daquelas cidades siciliotas, com seus mitos em mutação, seus reinos criando identidade e unidade, tornava-se um campo  bem mais complexo. Sendo assim, faz-se necessário avaliar a figura de Héracles nas moedas como um todo.
            Seguindo o exemplo das cunhagens de Selinunte, Kraay nos diz que: “ Sobre os didracmas, o tipo do reverso foi similar àquele dos tetradracmas, mas com o nome de outro rio local, o rio Hypsas. O tipo do anverso, por outro lado, foi diferente por ter apresentado  Héracles  derrubando  o  touro  de  Creta com sua clava. Existe uma abundante evidência do culto de Héracles em Selinunte, e a fundação de Minoa por Selinunte na costa sul da Sicília provém de uma conexão entre Selinunte e a lenda cretense, na qual o Trabalho do Touro de Creta foi utilizado como que apropriado para a escolha de uma moeda-padrão”. Com este exemplo podemos perceber que, além do Trabalho do furto dos Bois de Gerião, o Trabalho da captura do Touro de Creta também relaciona-se, de alguma maneira, com a formação das cidades siciliotas. E também podemos atribuir à cunhagem destes didracmas a questão do Héracles heróico.
A propósito das moedas fabricadas em Selinunte, Lacroix desenvolve todo um trabalho para explicar porque os selinuntinos buscavam no trabalho de Héracles, de matar o touro, desempenhado na ilha de Creta, inspiração para cunhar suas moedas. Selinunte não se contentou em bater os tetradracmas com os tipos de Apolo e Ártemis sobre uma carruagem. Na metade do IV século a cidade coloca à direita de seus didracmas um motivo que não oferece pequeno interesse: a representação de Héracles controlando um touro (Pl. II,5). O herói está em pé à direita, brandindo sua clava. Com a mão esquerda, ele segura um chifre do touro, enquanto que, com a perna esquerda erguida ele pressiona o flanco do animal, o qual se levanta sobre as patas de trás. Ainda é possível fazer uma alusão aos trabalhos de Empédocles, que coloca o touro como símbolo de um rio com poderes maléficos, contudo, o autor procura uma explicação para os tipos monetários nos cultos da cidade e nas tradições relativas a sua origem.
O culto de Héracles é atestado em Selinunte por numerosa quantia de documentos epigráficos  e  arqueológicos.   Além  da  presença  de  um  santuário  dedicado  ao  herói, e diversas inscrições, a imagem de Héracles orna numerosos edifícios da cidade.   Os  cunhos  para a fabricação das moedas  que  foram  descobertos  em  Selinunte,  na  região do templo C, não são menos instrutivos. Entre os motivos que aparecem mais freqüentemente sobre os documentos, distinguiu-se a representação de Héracles, demonstrada pela aparição da clava. Lacroix também propõe que a imagem de Héracles em companhia do touro de Creta, acompanhado da letra S, deve possuir um caráter oficial: ela orna provavelmente o selo público da cidade. As moedas nos mostram que esse motivo serviu de emblema à cidade no V século a. C., porém ele é tratado agora de uma maneira um pouco diferente: Héracles, a partir de agora, triunfou sobre o animal, ele apoiou sua clava sobre seu ombro esquerdo e estendeu a mão direita sobre a cabeça do touro.
Junto desses testemunhos podemos perceber que os selinuntinos tinham uma veneração particular por Héracles. Mas, de onde vem o culto do herói? Se nós contarmos com a relação religiosa que a colônia tem com a metrópole ( Mégara ), tentando acreditar que seu culto possui uma origem megarense (  os cultos de Apolo e Ártemis tem maior relevância, além de que Héracles tem que se contentar com o segundo lugar, pois o herói preferido dos megarenses é Alcátoo, o que seduz a contrariar esta questão), temos que considerar que a figura de Héracles está presente também em  outras colônias de Mégara, na região do Bósforo,  sobre as margens do Ponto Euxino e em Heracléia do Ponto. Héracles é o patrono desta última, que a ele a cidade dedicou seu nome, ele está constantemente representado sobre suas moedas de bronze da época Imperial, mostrando quando que ele é honrado na qualidade de fundador. Nas colônias de Heracléia, Quersoneso e Callatis, a presença  do herói também constitui-se em uma relação muito importante. Héracles figura sobre as moedas dessas duas vilas, e uma delas, Callatis, venera-lhe como seu fundador.
            Tentou-se explicar a presença do culto de Héracles em Heracléia do Ponto por uma influência   beócia,  para  considerar  o  valor  dessa  hipótese  basta  recordar  que foram os beócios que participaram da fundação da colônia originária de Tanagra. Ora, se Héracles é nascido em Tebas e se ele se liga à Beócia por numerosas tradições, em Tanagra, entretanto, se busca em vão o menor traço deste herói. Por outro lado, podemos contradizer esta explicação  se justificarmos a presença de Héracles nas outras colônias megarenses, como Bizâncio, Calcedônia e Messâmbria. Se cada uma dessa cidade não assinala algum elemento beócio, a nota pode se aplicar muito bem à Selinunte.
            A solução do problema caminha em outra direção. Entre as notáveis obras que Kr. Hanell consagrou aos cultos de Mégara, ele mostrou que os dórios vieram se instalar nessas vilas quando tinham ocupado o Peloponeso, e ele tentou determinar o ponto de partida dessa migração. É possível que seja de Argos que esses invasores dórios tenham partido, e a existência de cultos comuns a Mégara e a Argos trazem a esta hipótese uma confirmação que não podemos negligenciar. Também, para reforçar esta hipótese, constata-se que a lista dos reis de Mégara são estabelecidos sobre o mesmo modelo que a lista dos reis de Argos.
            Sobre a presença de Héracles nas moedas selinuntinas A. J. Dominguéz começa por explicar a heterogeneidade da primitiva população de Selinunte como uma característica marcante desta cidade, e procura uma ligação entre as cunhagens da cidade com as muitas representações de Héracles lutando com o touro de Creta. Acaba por citar Lacroix e sua tese de que a presença de Héracles e o touro de Creta nas moedas selinuntinas de meados do V século, tem como desejo  vincular-se à duas das mais ilustres cidades gregas Argos e Cnossos. Contudo, ele lamenta:  quem dera se pudéssemos pensar que em sua fundação intervieram elementos desta procedência, e termina por lamentar tratar-se de uma hipótese. Em outras palavras, Domingues quer dizer que, infelizmente, não se pode comprovar ainda esta hipótese de Lacroix, e termina sua argumentação de uma forma cética. Contudo, acreditamos que o ponto de vista de Lacroix não se reduz a simples conjecturas, e que em seu trabalho Héracles e o Touro de Creta, são apresentados tanto elementos históricos e mitológicos, quanto arqueológicos e epigráficos, que entram num jogo de confrontações e acabam por proporcionar sérias explicações para a presença de Héracles nas moedas de Selinunte. 
            Tentando fechar a relação de Héracles com o touro de Creta nas moedas selinuntinas, haja vista serem as únicas de toda a Sicília que recorrem a um motivo externo, temos preocupações genealógicas que explicam o motivo para ornar o direito dos didracmas. Descendentes dos argivos que antigamente ocuparam Mégara, os selinuntinos vieram de encontro com seus parentes os habitantes das vilas cretenses, fundadas pelos argivos. Pensando mais particularmente à Cnossos, pois é justamente lá que a lenda localiza a vitória de Héracles sobre o touro.
            Como as outras colônias gregas da Sicília, Selinunte é uma cidade nova, privada de passado lendário e que teve de criar, ela mesma, seus títulos de nobreza. Ela não se contentou em honrar as divindades de Mégara, Apolo e Ártemis. Representando sobre sua moeda o combate de Héracles contra o touro de Creta, ela invocou a ligação, que uniram as duas cidades mais ilustres da Grécia.
Jenkins também nos propõe uma reflexão a respeito da presença de Héracles na iconografia monetária, a partir de uma cunhagem de Siracusa. Ele diz que: “Entre as moedas siracusanas deste período (último quarto do século V a. C.), há algumas dracmas com a presença de Atena sobre o anverso, e o reverso apresentando um guerreiro o qual, por sugestão de um altar e a cabeça de um carneiro sacrificado por ele, pode ter sido objeto de um culto local. Seu nome, escrito abaixo, é Leucáspis, que, nos parece, foi um herói dos indígenas sícanos (os habitantes da Sicília antes dos gregos), e foi vencido por Héracles. Seu preciso significado em Siracusa tem sido muito discutido, e seu aparecimento tem sido interpretado como uma inclinação dos gregos dóricos a reclamar a herança de Héracles e a posse da Sicília. Héracles, ele mesmo, aparecera um pouco depois em algumas moedas siracusanas de ouro”.
            Este exemplo nos remete à questão dos colonos do Peloponeso, já abordada anteriormente. Eles procuram tirar proveito da vitória de Héracles sobre Leucáspis, príncipe nativo, de duas formas: primeiro, apropriando-se das terras nativas;  segundo, fazendo com que os indígenas percebessem que eles eram mais fortes e que não deveriam impor resistência a suas intenções coloniais. Percebemos, a partir deste exemplo, a importância desta gesta de Héracles  para o futuro político de Siracusa.
            Estes breves exemplos já nos colocam a par da forte relação existente entre as representações de Héracles nas moedas da  Sicília, seu culto, e a relação de tudo isso com a política de colonização desenvolvida pelos gregos.
            Por fim, todas as façanhas de Héracles na Sicília acabaram, de um modo ou de outro, virando temas de cunhagens. Diodoro nos apresenta a fundação da cidade de Alesia por Héracles ( Diodoro, Livro IV, 18. 7-19 ). Ainda Diodoro nos remete a fundação de Heracléia (próxima ao monte Érice) baseando-se em um mito que apresenta Héracles banhando-se naquela região ( Diodoro Livro IV, 23 ). Ora, a iconografia monetária de Heracléia nos monstra diversas representações de Héracles. Seriam despretensiosas essas representações?  Queremos crer que não. Esse artigo tem a intenção de demonstrar que todas as emissões de moedas que figuravam Héracles em seus anversos ou reversos, sempre buscaram uma razão mitológica ou uma razão político-econômica: a influência sobre os soberanos tanto dos maravilhosos feitos heróicos, como da virtuosidade divina deste que foi sem dúvida, um dos maiores heróis que a mitologia grega já conheceu.


BIBLIOGRAFIA

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