(Por Roberto da Silva Rodrigues)
Frente a frente com o inimigo, após 20 anos. Esta a minha surpresa ao
comparecer a uma feira de numismática de uma associação de
colecionadores, em Braga, na visita a Portugal, ano passado. Eu o
reconheci pela cicatriz na face esquerda e a mão direita manchada.
Cicatriz e marcas que eu fiz, ao me defender de seu ataque e escapar,
num fatídico domingo, quando ele, o “Numismata Ácido”, tentou me matar,
para silenciar a principal testemunha ocular de seus crimes.
Conheci Ácido na Escola Técnica, em 1982. Era um colega de curso, de
outra turma, que vendia moedas de prata a preços mais em conta que nas
lojas. Eu era um mero estudante, com pouca grana no bolso, insuficiente
pra manter o hábito caro de colecionar moedas. E Ácido – apelido pelo
qual ele era conhecido, seu nome era Donato – trabalhava numa oficina de
fundo de quintal com o tio, derretendo moedas e outras peças de prata
para comercializar o metal.
Quando ele soube que eu era um
colecionador iniciante, me procurou, oferecendo uma moeda de 2.000 réis
do Dom Pedro II (o popular “cabeção”) pela metade do preço de catálogo.
Dizia que a peça tinha teor de prata elevado, e podia provar. Tirou do
bolso um frasco plástico, com ácido nítrico. Abriu o recipiente e pingou
uma gota na moeda. “Observe. É uma reação química. Se o líquido ficar
branco, é prata 90. Boa qualidade. Se ficar verde, é prata baixa, de
liga...”
Após comprovarmos a mudança de cor do líquido para
branco, ele puxou do bolso outra moeda, um 2.000 réis da década de 20. E
tornou a pingar o líquido na moeda. A cor ficou verde. “É prata baixa,
vagabunda”, sentenciou, abrindo um sorriso sarcástico. Fiquei fascinado
com aquilo. Economizei o dinheiro do lanche por um mês, passei fome, mas
comprei a moeda de 2.000 réis. Ácido prometeu trazer novas peças. Botou
o frasco no bolso do jaleco e seguiu rumo ao laboratório de química.
Ao longo do ano, aumentava a coleção comprando peças de prata com
Ácido. Numa ocasião, ele comentou sobre o trabalho do tio. Ele comprava
artigos de prata a preços miseráveis, derretia o metal e revendia a
ourives, ou colecionadores – como no meu caso. Donato tinha as pontas
dos dedos manchadas, efeitos do manuseio com ácidos. Isso lhe dava
aspecto sinistro. Tinha poucos amigos. Eu era um deles.
No ano
seguinte, Ácido desapareceu da escola e eu voltei a comprar moedas de
comerciantes, por preços bem salgados. Nunca mais o vi, até que, num
domingo chuvoso, em 1992, após contemplar minha coleção de moedas,
peguei o jornal e me deparei com macabra notícia: mulheres encontradas
mortas, com marcas de sevícias e uma pequena moeda de prata pousada
sobre os corpos. Os rostos tinham queimaduras de ácido.
A
polícia estava interrogando donos de numismáticas e colecionadores. Uma
hora iriam chegar a mim, com certeza. Mas o que eu teria a acrescentar
às investigações? Nada... Ou teria?
Lembrei de Ácido e de suas velhas manias. Há quantos anos... Seria ele o autor dos crimes?
Continuando a ler a matéria, bato os olhos no retrato falado divulgado
pela polícia. Uma testemunha tinha visto o criminoso carregando um corpo
para um beco, deixando um pequenino objeto sobre a vítima: uma moeda de
prata de 500 réis. Levei um choque. Os traços do retrato lembravam
Donato, o “Numismata Ácido”.
Eu sabia onde ele morava. Tinha
ido lá certa vez, curtir as experiências que fazia com ácidos. Era em
Rocha Miranda, subúrbio do Rio. Local isolado, fim de rua sem saída.
Peguei dois ônibus. E já era quase meia-noite. A iluminação deixava a
desejar. Só a lua cheia pra me guiar os passos.
Muitos anos
tinham passado desde que visitei Ácido, mas o tempo parou naquele lugar.
A casa era a última da rua, estava às escuras, exceto por tênue luz
acesa, nos fundos. Sim, no velho quintal onde Donato brincava de
cientista em busca da “pedra filosofal”... Engraçado. Ele me dizia que
um dia acharia a fórmula pra transformar prata em ouro. Louco de pedra o
sujeito.
Pulei o muro e fui ao quintal. Então vi Donato,
numismata doentio, forçando uma mulher a engolir uma moeda de prata. O
objetivo do enfermo mental era recolher a moeda dos intestinos da
mulher, expelida por vias normais. Ele explicava que fazia parte de um
processo de transformação do metal para virar ouro. “Os fluidos internos
do corpo feminino, aliados a uma fórmula que inventei e onde vou
mergulhar a moeda, vão transformar essa prata em ouro!”
Ela se recusava a engolir. Donato lhe mostrou uma garrafa cheia de ácido sulfúrico.
“Você vai ser mais uma delas. Acabou!” Mas antes que lançasse o líquido
corrosivo no rosto da mulher, dei um pulo em sua direção. Ácido tomou
um susto. ”Quem é você e o que faz aqui?”
Sem dizer nada, dei
um chute na garrafa, que espatifou na mão do psicopata. Ele soltou um
urro de dor ao sentir o ácido corroendo a pele. A garota correu, pulou o
muro, sem olhar pra trás. Eu ia fazer o mesmo, mas Donato me segurou
pelas pernas e me lançou em direção a uma estante, cheia de moedas de
prata acondicionadas em gavetas-moedeiros.
O estrondo foi
grande. Desabei junto com as caixas. As gavetas quebraram e por todos os
lados vi moedas quicando no chão... Muitas eram comemorativas, Flor de
Cunho, e só naquela confusão já perderam metade do valor pelos arranhões
e amassados que criaram em suas bordas...
Ácido estava
furioso também pelo prejuízo e voou em minha direção. Mas eu fui
prevenido. Saquei de um punhal e dei um golpe em seu rosto, atingindo a
face esquerda. Ele recuou, cambaleante, apoiando-se numa mesa onde havia
ferramentas de coleção. O bandido arremessou uma lupa contra mim. Pegou
só de raspão na minha cabeça. Foi nessa hora que me identifiquei.
“Donato! Você está louco! Não lembra de mim? Seu colega de Escola
Técnica, colecionador de moedas de prata... Fizemos experiências com
ácidos nos anos 80...”
“Então é você? Idiota! Eu ia descobrir hoje, finalmente, minha pedra filosofal, mas você impediu. Por isso eu vou te matar!”
Antes que fizesse menção de me arremessar outra ferramenta numismática,
saí correndo, não sem antes ouvir ele vociferar: “Um dia vamos nos
encontrar. E você será um homem morto!!”
2012. Agora estávamos
frente a frente. Eu como comprador e ele como vendedor, do outro lado de
uma mesa. Suas moedas de ouro eram magníficas, chamando atenção dos
numismatas presentes. Ácido era agora um homem rico. Comerciante de
moedas respeitado em Portugal, onde fixara residência. Teria ele
descoberto a tal pedra filosofal?
Quando me viu, senti gelar o
sangue. Pelo seu olhar, ele me reconheceu. Um sorriso macabro surgiu em
sua face, realçando a cicatriz de punhal que lhe fiz. Disse meu nome, em
alto e bom som, chamando atenção de todos.
“Mas se não é o meu
velho amigo, dos tempos de Escola Técnica! Seja bem-vindo. Venha ver as
moedas de ouro mais fabulosas da exposição. Com precinhos incrivelmente
belos!
Hesitei por uns segundos, mas mantive a calma e me
aproximei. Ácido parecia se divertir com a situação. Explicava
pormenores das moedas com um conhecimento que, confesso, me deixou
impressionado. “Este aqui é um dobrão espanhol recolhido de um naufrágio
na costa do México, em 1748... Esta outra é uma peça germânica, pilhada
pelas tropas de Napoleão de um castelo na Prússia... 25 gramas de ouro
puro!”
O ódio estava no ar, mas fiquei mesmo preocupado quando
reparei um frasco com líquido transparente no bolso da camisa de Donato.
Era do mesmo tipo, dos velhos tempos. Sulfúrico, com certeza. Eu
precisava bolar um plano, e rápido, porque o evento já estava no fim e
os policiais que faziam a segurança encerravam os trabalhos...
Até aquele momento, eu já tinha comprado uma meia-dúzia de moedas de
prata do Brasil colonial e de Portugal monárquico, e ainda duas peças de
ouro - uma da Holanda, outra da Espanha. A espanhola era pesada, devia
ter 20 gramas (fiquei três anos economizando uma boa grana para aquela
viagem, para torrar tudo em moedas).
Resolvi chamar Ácido para
um espaço reservado, num mezanino próximo, onde estavam expostos
patacões de prata do século XIX. Precisamos conversar. Quero te pedir
umas desculpas por alguns incidentes do passado - disse eu.
“Sem ressentimentos, cara! Vamos curtir aquelas patacas de prata lá em
cima. Vamos lembrar do tempo em que a vida era de prata. Hoje pra mim
ela é de ouro, HAHAHA!!!”
Subimos e fitamos as peças, por
intermináveis minutos. “Ácido”, afinal, você descobriu mesmo a pedra
filosofal? De onde veio todo esse dinheiro pra montar seu estande de
moedas de ouro? Ele respondeu, friamente: “Que nada. Eu casei com uma
empresária francesa rica. Dei o golpe do baú. Depois, foi só ministrar
umas pequenas doses de arsênico às suas refeições e...”
Você é
muito esperto. Quero me redimir das agressões e do estorvo que causei.
Tome. Fique com esta moeda de ouro espanhola. É um velho dobrão. Ouro
puríssimo. Eu ia levar para o meu pai, ia lhe dar de presente de
aniversário. Você sabia que meu pai tinha um hábito esquisito?
Antigamente, em Portugal, o pessoal tinha o hábito de receber pagamentos
em moedas de ouro e mordê-las pra ver se eram verdadeiras. Sabe como é,
o ouro é maleável.
“Dessa eu gostei. É como os atletas fazem
nas Olimpíadas, não? Mordem suas medalhas no pódium...”, divertiu-se
Donato. Ele pôs o dobrão na boca e deu uma mordida. Só não teve tempo de
verificar a marca dos dentes na moeda. Porque o soco que lhe dei fez o
dobrão entalar em sua garganta. Ele me olhou assustado, puxou o frasco
de ácido, mas ele caiu das suas mãos...
O psicopata deu um giro
no ar e despencou de uma altura de cinco metros, caindo numa mesa de
tampão de vidro onde estavam moedas romanas dos césares. Cacos voaram
para todos os lados e os colecionadores correram em direção ao corpo
inerte de Ácido. Felizmente, ninguém percebeu minha presença no
mezanino. Me escondi atrás de uma cortina e ali havia uma saída de
emergência.
No avião, de volta ao Brasil, olhei minhas novas
aquisições. As pratas chegavam a cintilar. É, não foi de todo mal. Perdi
alguns milhares de reais, sim, no dobrão largado na garganta de um
criminoso, mas valeu a pena. Tenho sete estojos esperando por estas
peças lá em casa e não só isso. Afinal, a justiça foi feita, 20 anos
depois!